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Como o nazismo instalou uma ditadura, democraticamente

Foto histórica da Alemanha no século XX, ilustra o contexto em que o verso “Deutschland über alles” foi inserido no hino do partido. Fonte: Wikimedia Commons

A expressão “Deutschland über alles” é o verso inicial de um antigo hino nacionalista alemão do século XIX. Mais tarde, foi apropriado pelos nazistas e incorporado ao hino do partido. Em tradução livre, significa “Alemanha acima de tudo”. O slogan tornou-se peça-chave nas campanhas do partido nazista.

Em 1932, Adolf Hitler ficou em segundo lugar na eleição presidencial. No entanto, seu partido obteve 37,4% dos assentos no parlamento alemão, tornando-se maioria. Em janeiro de 1933, Hitler foi nomeado chanceler da Alemanha. A partir daí, todo mundo sabe o que aconteceu.

Um paradoxo histórico: a ditadura nascida da democracia

O que muitos talvez não saibam é que a ditadura nazista não precisou de tanques ou batalhas sangrentas para se instalar. Na verdade, os nazistas chegaram ao poder por vias democráticas, primeiro ocupando pouco mais de um terço do parlamento, e feito cupins, destruíram a democracia, por dentro — um paradoxo que ainda hoje assombra a história mundial.

Disponível no playstore. Foto: reprodução.

A propaganda nazista teve papel essencial nesse processo. Hitler ficou conhecido por seus discursos de alto impacto, mas, como bem observa Eduardo Sklarz, autor de “Nazismo: como ele aconteceu” (Editora Abril, 2014), “o sucesso de qualquer orador depende da plateia”.

Sabem aquele ditado, que diz “Não toquem tambor pra maluco dançar”? Então, Sklarz mostra o que pode acontecer quando um país inteiro resolve “entrar na dança” de um discurso extremista. Inspirado nessa leitura, o Blogdocalil apresenta três motivos que explicam o apoio popular ao regime nazista no início do século XX.

1 – Hiperinflação no pós-guerra

A hiperinflação que devastou a Alemanha teve muitas causas. No entanto, todas estão ligadas direta ou indiretamente à Primeira Guerra Mundial e ao Tratado de Versalhes.

Apesar de concebido como um acordo de paz, o Tratado significou para os alemães uma profunda perda de poder militar e econômico. Segundo o tratado, o governo alemão foi responsável pela guerra, e como punição, deveria:

  • pagar reparações financeiras altíssimas,
  • renunciar a partes do território,
  • reduzir o número de militares,
  • e não adquirir novos armamentos.

O valor da dívida foi estipulado em 269 bilhões de marcos-ouro, o que equivalia a cerca de 1 trilhão de dólares (valores estimados do ano da publicação do livro, 2014). A questão principal era: como pagar uma dívida colossal com uma economia em frangalhos?

A solução encontrada foi imprimir papel-moeda, o que levou a uma inflação galopante.

A crise econômica se agrava

Para compensar um calote nas reparações, França e Bélgica chegaram a invadir regiões alemãs com minas de carvão. A fim de evitar novos conflitos, o governo imprimiu ainda mais dinheiro para manter os trabalhadores em casa.

Resultado: o poder de compra despencou. A insatisfação da população só crescia.

Nesse cenário de fragilidade extrema, os nazistas ganharam espaço atacando duramente o governo e sua política econômica. Hitler discursava e atraía o apoio de trabalhadores desiludidos com o sistema, o que nos leva ao segundo motivo por trás do apoio popular que se fortalecia naqueles dias.

2 – Insatisfação popular com a política tradicional

Uma democracia imposta

A chamada “política tradicional”, no contexto do pós-guerra, era representada pelos políticos responsáveis pela transição democrática na Alemanha. Essa transição foi, em grande parte, uma exigência do governo dos Estados Unidos, feita para facilitar a negociação de sanções mais leves junto aos países aliados depois da guerra.

Os antigos líderes do império alemão aceitaram a proposta como uma estratégia de redução de danos. Com isso, passaram a responsabilidade do acordo para um novo governo democrático — caso algo desse errado, eles teriam a quem culpar.

O nascimento conturbado da República de Weimar

A democratização não foi um processo tranquilo. Houve disputas intensas entre comunistas, social-democratas e conservadores. No fim, os social-democratas conseguiram formar a base da República de Weimar.

Porém, as negociações com os países aliados não saíram como o esperado. O presidente dos EUA, Woodrow Wilson, perdeu apoio no congresso e apareceu enfraquecido para negociar. O resultado foi um tratado com cláusulas extremamente duras para a Alemanha.

Essas condições pesadas estão na raiz dos problemas que vieram a seguir.

A crise corroeu a confiança na política

Mulher usa dinheiro para acender fogão, hiperinflação na Alemanha, 1920. Fonte: Bygonely
Licença: Domínio público.

Durante a República de Weimar:

  • O governo emitiu papel-moeda em excesso;
  • A inflação saiu do controle;
  • O desemprego aumentou;
  • E o salário da classe trabalhadora perdeu valor rapidamente.

Com a situação fora de controle, a confiança da população nas instituições democráticas diminuía. O povo esperava soluções, e elas não vinham.

Foi nesse contexto que muitos aderiram ao discurso nazista. Trabalhadores, empresários e até membros da aristocracia começaram a ver no partido de Hitler uma resposta à crise.

O ressentimento como combustível político

Mas o nazismo não se apoiava só na fragilidade econômica e falta de perspectiva da sociedade alemã. A maioria dos alemães ainda rejeitava a derrota na Primeira Guerra. Para alemães, o império foi indulgente ao pedir um armistício, pois seu país era quem tinha a vantagem. Por isso o exército voltou do front sendo tratado como herói, e não como derrotado.

Mas na realidade, nada ia muito bem. O pedido de armistício foi uma tentativa de evitar a derrota total, pois a economia alemã se deteriorava enquanto os norte-americanos entravam na guerra com enorme poder industrial, segundo informações do site Opera Mundi, em matéria intitulada “Hoje na História: 1918 – Alemanha assina armistício que põe fim à Primeira Guerra Mundial“, assinada por Max Altman.

De todo modo, um sentimento comum de orgulho nacional ferido já havia se instalado em boa parte da sociedade alemã. Como destaca Sklarz, acendeu-se a “fagulha do ressentimento”, e Hitler soube explorá-la como ninguém.

Adolf Hitler, o porta-voz do ressentimento

Em seus discursos, Hitler dizia o que muitos queriam ouvir. Mesmo com frases absurdas e declarações violentas — defendendo a morte de judeus, homossexuais e comunistas — as pessoas ignoravam.

Ele queria ser notado. Falassem bem ou mal, não importava, por que mais importante era chamar a atenção. E conseguia. Esse era o seu objetivo.

Apesar do apoio crescente, sua primeira tentativa de golpe, feita pela força, fracassou. Foi preso e condenado por alta traição. Durante a prisão, escreveu o livro Mein Kampf (Minha Luta) e aprendeu duas lições fundamentais:

  • Era essencial conquistar o apoio da polícia e do exército;
  • A melhor forma de tomar o poder era pela via constitucional, com apoio popular.

3 – Apoio de instituições civis e governamentais

Reconhecimento e alianças estratégicas

Ao longo de sua trajetória, Hitler contou com o apoio de setores civis e governamentais. Não apenas por sua oratória, mas por afinidade ideológica e acordos políticos estabelecidos para frear o avanço do comunismo.

Ainda como soldado, Hitler foi promovido a braço direito do capitão Karl Mayr. Tornou-se informante do Exército Alemão e palestrante para jovens recrutas, com a missão de:

  • Estimular o nacionalismo;
  • Combater ideias bolcheviques.

As palestras foram bem-sucedidas. Hitler se destacou e ganhou prestígio.

O antissemitismo como discurso oficial

Designado para explicar a derrota alemã na Primeira Guerra, Hitler afirmou que os judeus seriam os responsáveis, pois “infectavam a sociedade com tuberculose racial”. Disse que o único “remédio” seria persegui-los e eliminá-los.

Esse discurso rendeu nova promoção.

A infiltração no Partido dos Trabalhadores Alemães

O exército enviou Hitler para se infiltrar em um partido de extrema-direita recém-criado: o Partido dos Trabalhadores Alemães, que depois se tornaria o Partido Nazista.

Lá, conheceu Anton Drexler, nacionalista extremista, racista e fundador do partido. Impressionado com os discursos inflamados de Hitler, Drexler o convidou para integrar o partido.

Mais tarde, quando Hitler foi julgado por alta traição depois da tentativa fracassada de golpe, o juiz nacionalista Georg Neithardt lhe deu a pena mais leve possível. Georg via o réu como alguém com “sentimentos patrióticos”.

Retorno à política e ascensão final

Após sair da prisão, em 1924, Hitler contou com o apoio de Ernst Hanfstaengl, empresário alemão formado em Harvard. Com ele, traçou sua nova estratégia política.

Em janeiro de 1925, Hitler se encontrou com o ministro-presidente da Bavária. No mês seguinte, o partido nazista foi reativado.

Ele não se candidatou logo de início, mas observou as eleições de perto. Percebeu que era essencial:

  • Tratar dos problemas sociais com mais atenção;
  • E conquistar o apoio de lideranças religiosas, tanto católicas quanto protestantes.
 Homem alemão vestido com moedas sem valor devido à hiperinflação, 1923. Fonte: Fonte: Bygonely
Licença: Domínio público

Em 1933, com maioria no parlamento, Hitler foi nomeado chanceler pelo presidente Hindenburg, para conter o avanço dos comunistas.

Agora, com o apoio de industriais, forças armadas e população, ele dava o primeiro passo rumo ao totalitarismo.

O início do 3º Reich

A ditadura era bem-vinda (ao menos no começo).

Nos primeiros meses do governo nazista, muitos alemães enxergaram a ditadura com bons olhos. A polícia passou a agir com brutalidade contra criminosos — e isso conquistou parte da população.

Outros cidadãos sentiram-se beneficiados por voltarem a trabalhar. Foram abertas inúmeras vagas de emprego com a demissão de judeus por motivos puramente raciais.

A pressa em deixar a crise para trás fez com que a maioria da população desviasse os olhos dos primeiros abusos.

Hitler também cumpriu a promessa de campanha: internar opositores políticos, como social-democratas e comunistas, em campos de concentração. O campo de Dachau foi o primeiro.

A consolidação do Estado totalitário

Da esquerda para a direita: Heinrich Himmler, Rudolf Hess, Gregor Strasser e Adolf Hitler. Fonte: Wikimedia Commons.

Foi assim que se deu o primeiro passo para a criação do 3º Reich, um regime totalitário em que todos eram, ao mesmo tempo, denunciantes e denunciados, que instituiu:

  • Políticas eugenistas: o governo passou a promover controle de natalidade, esterilizações forçadas de alemães considerados “impuros”, e incentivar a procriação de “arianos saudáveis”. A Alemanha virou um laboratório humano.
  • Expansão militar: o regime invadiu países vizinhos, buscando conquistar território e recursos estratégicos.
  • O Holocausto: um projeto de extermínio sistemático que assassinou 6 milhões de judeus, com o apoio de indústria, Igreja e sociedade civil.

Um horror silencioso (e orquestrado)

A morte foi espalhada até onde os olhos não podiam ver. Enquanto o mundo se envolvia na guerra, os judeus eram assassinados nos campos de concentração, longe da vista da maioria da população.

Um dos trechos mais chocantes sobre esse processo foi pronunciado por Heinrich Himmler, chefe da SS, em um discurso a generais:

“A aniquilação do povo judeu é uma página gloriosa de nossa história, que não foi escrita. Nem jamais será.”

Himmler se enganou.

Conclusão

As eleições de 1932 na Alemanha do pós-guerra demonstraram um eleitorado disposto a fazer de seu voto um protesto contra a democracia recém implantada. Perderam a fé em um sistema que não trouxe os benefícios que prometeu.

Porém, dentre todos os políticos na época, Adolf Hitler se destacava, sobretudo por seus discursos, que pareciam absurdos de tão ofensivos, mas também vendia o sonho de um país reconstruído.

A ascensão do nazismo mostra que regimes autoritários não nascem apenas de tanques e golpes violentos. Às vezes, eles crescem com discursos sedutores, voto popular e instituições coniventes.

Este talvez esse seja o maior alerta que o século XX pode nos deixar. Afinal, quem precisa de tanques quando se pode sabotar o sistema… democraticamente?

E você, já tinha visto em algum outro lugar que a democracia pode ser sabotada com votos? Ficou impressionado? Deixe seu comentário, compartilhe suas ideias sobre o assunto.

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