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Crítica a Israel é antissemitismo? Entenda a polêmica em torno da definição da IHRA

Debate nacional sobre antissemitismo e críticas a Israel se intensifica. Governo de Rondônia coloca o estado na rota de controvérsia.

O Projeto de Lei 472/2025 propõe que o Brasil adote, em nível nacional, a definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). A proposta reacende o debate sobre os limites entre liberdade de expressão e discurso de ódio, especialmente em um cenário de crescente polarização. No centro dessa discussão, um caso ocorrido em 2023 chama a atenção.

Em novembro daquele ano, o jornalista Breno Altman, filho de judeus e conhecido por suas posições críticas à política de Israel, foi surpreendido pela decisão da 16ª Vara Cível do Tribunal de Justiça de São Paulo, que determinou a retirada de algumas de suas postagens nas redes sociais, feitas após o ataque do Hamas a civis israelenses, em 7 de outubro. O juiz Paulo Bernardi Baccarat atendeu a uma solicitação da Confederação Israelita do Brasil (CONIB), alegando que as publicações seriam potencialmente ofensivas à comunidade judaica.

Segundo a CONIB, Altman teria comparado judeus e israelenses a ratos, evocando símbolos historicamente associados à propaganda antissemita nazista. A postagem em questão ainda pode ser consultada por meio de reportagens. Nela, o jornalista escreveu:

“Podemos não gostar do Hamas, discordando de suas políticas e métodos. Mas essa organização é parte decisiva da resistência palestina contra o estado colonial de Israel. Relembrando o ditado chinês, nesse momento não importa a cor dos gatos, desde que cacem os ratos.”

A metáfora dos “ratos”, na interpretação do juiz, poderia ser entendida como um “apito de cachorro” — expressão usada para mensagens veladas a determinados grupos — mesmo vinda de um jornalista judeu. Altman rebateu as acusações, e afirmou ter “orgulho de pertencer à militância contra o sionismo [base política-ideológica que deu origem à construção do Estado de Israel], ocupando a mesma trincheira escolhida por meus ancestrais há três gerações”, dos quais alguns foram vítimas do Holocausto.

Por outro lado, o juiz Paulo Bernardi demonstra insegurança quanto à própria interpretação ao reconhecer que talvez não haja crime ou ofensa deliberada nas falas de Altman. Ele admite que o conteúdo pode ter múltiplas leituras e que sua análise é superficial. Mesmo assim, decide em favor da CONIB:

“Anoto, de plano, que nessa análise superficial é possível que algum elemento de figura de linguagem usado nas postagens talvez não tenha a mesma interpretação que o requerido [Breno Altman] pretendeu. Ao mesmo tempo, não necessariamente deve ser acolhida a leitura que o autor [CONIB] faz neste calor do momento delicado e trágico, até porque há um viés natural e presumível.”

O caso gerou reações imediatas. Setores da comunidade judaica e analistas críticos apontaram a frase como antissemita. Por outro lado, o Sindicato dos Jornalistas Profissionais no Estado de São Paulo (SJSP) e a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) manifestaram solidariedade a Altman, defendendo a liberdade de expressão e denunciando ameaças sofridas pelo profissional.

O Coletivo Vozes Judaicas por Libertação também repudiou a ação da CONIB – uma entidade que declara apoio a Israel e ao sionismo – acusando-a de usar a luta contra o antissemitismo para silenciamento de críticas à política israelense.


28/05/2024 – Em Porto Velho, o governador Marcos Rocha assinou a adesão de Rondônia à definição de antissemitismo da Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). Fotos: Divulgação.

O Coletivo ainda demonstrou preocupação com a adoção, na época, da definição da IHRA pelas prefeituras de São Paulo e do Rio de Janeiro. Atualmente, ela já foi adotada por 11 estados brasileiros, incluindo Rondônia.

O Projeto de Lei 472/2025 e o contexto nacional

No dia 24 de maio de 2025, a Agência Câmara de Notícias noticiou a apresentação do Projeto de Lei 472/25, de autoria do deputado General Pazuello (PL-RJ), ex-ministro da Saúde. O texto propõe que a definição de antissemitismo da IHRA seja incorporada à legislação brasileira, com o argumento de que isso auxiliaria na educação e prevenção contra discriminação.

Críticos, no entanto, alertam para os riscos dessa proposta. Em nota publicada na plataforma X (antigo Twitter), a Federação Palestina do Brasil (FEPAL) afirmou que o projeto visa criminalizar críticas ao governo de Israel, denunciando a atuação do “lobby sionista na câmara”.

Caso o PL 472/25 seja aprovado, ela poderá se tornar parâmetro legal em todo o país, o que abre espaço para interpretações controversas, como já ocorreu no caso de Breno Altman. Críticos temem que manifestações legítimas de oposição à ocupação da Palestina sejam enquadradas como discurso de ódio — inclusive se forem feitas por judeus antissionistas.

O que é a definição da IHRA?

A Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA) é uma organização intergovernamental voltada à preservação da memória do Holocausto, ao combate ao antissemitismo e a outros tipos de genocídio, como o dos ciganos. Formada em 1998, ela conta com 35 países-membros e 8 observadores.

Em 2016, a entidade adotou o que ela chama de “definição prática de antissemitismo”, que afirma:

“O antissemitismo é uma percepção específica dos judeus, que pode ser expressa como ódio aos judeus. Manifestações retóricas e físicas de antissemitismo são direcionadas a indivíduos judeus ou não judeus e/ou suas propriedades, a instituições da comunidade judaica e instalações religiosas.”

A definição da IHRA surgiu justamente para combater distorções sobre o Holocausto e os discursos que relativizam ou negam os crimes cometidos pelo regime nazista. No Blog do Calil, você pode saber mais sobre como o nazismo se estabeleceu e passou a reprimir a liberdade de expressão em nome do nacionalismo — leia aqui.

Essa definição é acompanhada de exemplos. Alguns deles, no entanto, relacionam críticas ao Estado de Israel à prática do antissemitismo, e é aí que mora o problema: estudiosos apontam que a definição da IHRA é muito vaga, com potencial de inibir o debate público sobre a ocupação israelense em território palestino.

O texto do PL 472/25 é mais explícito ao mirar no antissionismo:

“[…] equiparar o antissionismo, a manifestação de ódio contra o Estado de Israel e a negação do Holocausto à prática do antissemitismo.”

Ou seja, o projeto de lei propõe transformar críticas a sionismo – a base político-ideológica que deu origem à construção do estado de Israel e que impulsiona a criação de colônias em solo palestino – em crime de racismo, buscando converter opinião política em discurso de ódio.

Uma alternativa: a Declaração de Jerusalém sobre Antissemitismo (JDA)

Como resposta à classificação da IHRA, em 2021, um grupo internacional de acadêmicos e especialistas — muitos deles judeus — publicou a Declaração de Jerusalém sobre Antissemitismo (JDA). A proposta foi elaborada por mais de 200 estudiosos das áreas de história do Holocausto, estudos judaicos e direitos humanos, com o objetivo de oferecer uma alternativa mais precisa, sem comprometer a liberdade de expressão.

A JDA define antissemitismo como

“discriminação, preconceito, hostilidade ou violência contra judeus como judeus (ou instituições judaicas como tais)”.

Diferente da IHRA, a JDA separa de forma clara a crítica legítima a Israel da prática do antissemitismo. Entre os exemplos que não são antissemitas, segundo a declaração, estão:

  • Apoiar soluções de Estado único, binacional ou federativo, em vez de um Estado judeu;
  • Criticar ou condenar políticas do governo israelense, inclusive utilizando termos como “apartheid” ou “colonialismo”;
  • Promover boicotes econômicos ou culturais contra Israel, desde que não envolvam retórica antissemita.

A Declaração de Jerusalém ganhou apoio de intelectuais, ativistas e organizações progressistas ao redor do mundo. Ela é vista como um instrumento importante para proteger tanto a luta contra o antissemitismo quanto a liberdade de expressão, especialmente em contextos de repressão a vozes dissidentes.

Por que a definição da IHRA é polêmica?

Em entrevista ao programa Ilustríssima Conversa, da Folha de S. Paulo, a professora Arlene Clemesha, especialista em história árabe da USP, afirma que a definição da IHRA tem um viés político. Segundo ela, ao associar antissionismo a antissemitismo, cria-se uma blindagem legal para o Estado de Israel e sua política de ocupação.

Clemesha ressalta que a condenação do antissemitismo é necessária, e que existe muitos casos onde o discurso crítico à Israel transborda para racismo – porém, a denúncia também deve ser feita sem silenciar críticas legítimas. De acordo com Clemesha, esse tipo de uso político do antissemitismo “constrói uma barreira legal contra qualquer oposição ao Estado israelense, mesmo quando seus representantes são acusados de práticas genocidas”.

Em defesa na Corte Internacional de Justiça, Israel negou as acusações de genocídio contra palestinos.

A crítica é compartilhada pelo Coletivo Vozes Judaicas por Libertação, fundado em novembro de 2023 por judeus não sionistas. Em artigo publicado no blog da Boitempo, o coletivo alerta para a crescente perseguição a vozes dissidentes no Brasil, citando o caso de Breno Altman, o padre Júlio Lancellotti e o professor Saleem Nasser, da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Para o coletivo, a adoção da definição da IHRA abre precedentes perigosos para a liberdade de expressão e de imprensa no país, especialmente em um contexto de crescente perseguição a solidariedade ao povo palestino.

Segundo matéria da Federação Palestina do Brasil (FEPAL), publicada em 28 de abril de 2025, a PL 472/2025, baseado no texto da IHRA abre margem para a criminalização de cidadãos brasileiros que denunciem violações de direitos humanos cometidas pelo governo israelense contra palestinos, rotulando as denúncias como antissemitas.

A FEPAL questiona pontos-chave da definição da IHRA, como a equiparação da ideia de classificar Israel de “empreendimento colonialista” com antissemitismo. Para o presidente da FEPAL, Ualid Rabah, esse argumento distorce o debate: seria o mesmo que acusar críticos do nazismo de “germanofobia”.

Denúncia de uso de imagens de cunho nazista por deputada brasileira para promover discurso de ódio contra palestinos. Veja o comentário aqui.

Outro ponto controverso é a condenação da comparação entre políticas do Estado de Israel e as da Alemanha nazista. Para Rabah, essa restrição ignora paralelos históricos como a desumanização sistemática de palestinos, e o confinamento da população civil em áreas densamente controladas, como Gaza — o que remete, por exemplo, à experiência dos judeus no gueto de Varsóvia. O ex-ministro da Defesa de Israel, Yoav Gallant, chegou a se referir publicamente aos palestinos como “animais”, discurso que remete ao usado contra judeus na Europa nazista.

A FEPAL levanta ainda dois possíveis desdobramentos da aplicação do PL 472/2025: a criminalização de quem denunciar entidades de lobby sionista por apoio a práticas genocidas em Gaza, e a acusação automática de antissemitismo contra quem acusar cidadãos judeus de serem mais leais à Israel, do que aos interesses de suas próprias nações.

Ao final, a federação sustenta que, se aprovado, o projeto de lei dará margem para ingerência indevida de interesses estrangeiros no debate público brasileiro, com risco real à liberdade de expressão, à crítica política e à solidariedade com povos oprimidos — valores fundamentais de qualquer democracia.

Mais do que um gesto

O Governador Marcos Rocha adotou oficialmente a definição de antissemitismo proposta pela Aliança Internacional para a Memória do Holocausto (IHRA). A decisão, aparentemente simbólica por ser baseada em uma proposição juridicamente não vinculativa, pode ter implicações concretas, como a possibilidade de ser usada para criminalização indireta de discursos. Um exemplo disso é a decisão do juiz Paulo Bernardi, que, mesmo reconhecendo a multiplicidade de significados na fala de Breno Altman, optou por acolher o pedido de uma entidade declaradamente defensora do sionismo, e denunciar um jornalista antissionista por antissemitismo.

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