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Se os alimentos não chegaram, o que a Flotilha da Liberdade entregou?

Ativistas da Flotilha estão no centro de uma batalha de narrativas. Com isso, a internet reafirma seu papel como o novo front de batalha

Paralelamente à tentativa de romper o bloqueio a Gaza, a ação da Flotilha da Liberdade gerou uma intensa disputa simbólica na web. Redes sociais como X e Instagram foram tomadas por conteúdos a favor e contra a interceptação do veleiro Madleen: enquanto organizações pró-Israel tentam vincular os ativistas ao terrorismo, apoiadores da missão contestam estas associações e expõem as contradições do discurso oficial — inclusive com auxílio de ferramentas de inteligência artificial, transformando a internet em mais um front de batalha, não por território, mas por legitimidade.

“Yacht das selfies” e sequestro em alto mar

A nova frente de batalha se abriu já no último domingo, 8. A segunda tentativa da Flotilha de entregar alimento à palestinos, só em 2025, foi interceptada pela marinha de Israel. A embarcação — menor que a usada na primeira missão — foi detida antes de alcançar o destino, e até o momento, não houve confirmação oficial sobre a entrega dos suprimentos. O governo israelense também não especificou a localização exata da operação.

Fonte: Reprodução.

O Ministério das Relações Exteriores de Israel publicou no X (antigo Twitter) que a embarcação violava um bloqueio marítimo internacionalmente reconhecido. No entanto, uma resposta acionando o Grok, IA nativa da plataforma, apontou que a legalidade desse bloqueio é alvo de controvérsia. Esse episódio, ainda que pontual, exemplifica como a iniciativa criou oportunidades de revelar as fissuras do discurso oficial.

O Ministério das Relações Exteriores de Israel noticiou a interceptação do Madleen com ironias em sua conta oficial no X. O texto descreve os 12 tripulantes como as “celebridades” do “iate das selfies”, acompanhado de imagens da ativista sueca Greta Thunberg risonha frente a um pedação de pão.

No mesmo dia, a Flotilha da Liberdade publicou vídeos de cada tripulante nas redes sociais. “Se virem este vídeo, fomos interceptados e raptados em águas internacionais”, disse a mesma Greta Thunberg, mas em registro pré-gravado e publicado nas redes após a operação da Marinha israelense.

Em meio a uma crise humanitária em curso, o Ministério das Relações Exteriores de Israel promove uma campanha de deslegitimação contra os tripulantes da Flotilha da liberdade, enquanto os membros da flotilha, com o objetivo declarado de levar mantimentos e alimentos para a faixa de Gaza, questionam a legalidade da interceptação.

Contudo, através da exposição midiática do caso, o grupo promoveu, indiretamente, maior exame nas redes sociais sobre o contexto do bloqueio marítimo.

No Brasil, internacionalistas e representantes de organizações de lobby passaram a publicar suas explicações do ocorrido.

A missão não chegou, mas repercutiu

André Lasjt, presidente executivo da StandWithUs Brasil — organização que atua em defesa da narrativa oficial de Israel — publicou dois vídeos no perfil da instituição no Instagram. Lasjt defende a legalidade do bloqueio marítimo israelense, nega a existência de bloqueios terrestre e aéreo, e sugere vínculos entre os tripulantes do Madleen com o terrorismo.

Segundo Lasjt, o bloqueio foi instituído após o grupo Hamas tomar a força o controle da Faixa de Gaza, em junho de 2007. Ele se baseia no relatório Palmer, da ONU, para defender o bloqueio marítimo. De acordo com relatório, publicado em 2011, a conclusão é de que o bloqueio está em acordo com o direito internacional.

A conclusão do relatório Palmer foi rejeitada por cinco especialistas em direitos humanos da ONU, ainda em 2011, segundo matéria da Agência Reuters de jornalismo. Os especialistas concluíram que o bloqueio sujeitou os moradores de Gaza a punição coletiva.

Claudia Assaf, diplomata do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, o Itamaraty, mantém uma conta pessoal no Instagram o @ddd.árabe, onde publica críticas à atuação do Estado de Israel. Em um vídeo de resposta à publicação de Lasjt, ela acusa o representante da StandWithUs de distorcer os fatos.

No react, Assaf descreve a interceptação feita pela marinha israelense como um ato de pirataria internacional, e contesta a afirmação de que toda a comunidade internacional apoia o bloqueio. Segundo a diplomata, países como os EUA, Austrália e União Europeia apoiaram sanções ao Hamas, “com restrições à ajuda e pressão diplomática”, mas sem impor bloqueios físicos — o que seria ilegal.

Israel criou a Comissão Turkel para apurar a legalidade do bloqueio marítimo à Faixa de Gaza e da ação militar que interceptou a Flotilha da Liberdade de Gaza, em 2010, que resultou na morte de dez tripulantes.

Formada por três membros israelenses com poder de decisão, e dois observadores internacionais sem direito a voto, a comissão concluiu que o bloqueio era legal, e a ação militar contra civis do navio Mavi Marmara foi proporcional.

Organizações de direitos humanos e parte da comunidade internacional rejeitaram o relatório: Ban Ki-moon, então secretário-geral da ONU, exigiu um inquérito imparcial e transparente; a Anistia Internacional classificou a comissão como “maquiagem”. o jornal israelense Haaretz chamou o relatório de “farsa”; e o grupo israelense Gisha afirmou que nenhuma comissão poderia justificar a punição coletiva da população de Gaza.

A diplomata também discorda de que o Hamas teria “tomado o poder à força”. Ela argumenta que o grupo chegou ao comando de Gaza por meio de eleições legislativas, ocorridas em 2006.

Greve de fome, deportação e acusações: o caso de Tiago Ávila

Tiago Ávila, internacionalista brasileiro, havia entrado no terceiro dia de greve de fome em solo israelense na quarta-feira, 11, antes de embarcar em um voo de deportação. O Governo de Israel fez o anúncio da viagem em mais uma publicação repleta de ironias.

Fonte: Governo de Israel/X

“Mais seis passageiros do ‘iate das selfies’, incluindo Rima Hassan [deputada francesa], estão saindo de Israel. Adeus — e não se esqueça de tirar uma selfie antes de partir.”, diz o texto.

Tiago já desembarcou no Brasil.

No Instagram, a Stand With Us divulgou vídeos relacionando o militante a grupos como Hezbollah e Hamas.

Em entrevista ao jornal O Globo, a esposa de Tiago, Lara Ávila, afirmou em entrevista ao jornal O Globo que a presença dele no funeral do líder do Hezbollah em fevereiro se deu no exercício do jornalismo, e como parte da sua trajetória de ativismo social.

A tentativa de associar membros da Flotilha ao terrorismo não é novidade.

Em maio de 2025, o navio da primeira missão do grupo, o Conscience, foi atacado por drones em águas internacionais, próximo a Malta, um pequeno país localizado no mar mediterrâneo. O ataque causou um incêndio e danificou a embarcação, que ficou impossibilitada de prosseguir viagem.

Após o ataque ao Conscience, André Lasjt, no Brasil, publicou um informe de uma rede saudita de jornalismo. No post, há um breve relato não confirmado sobre supostos vínculos da tripulação com atividades terroristas. O governo de Malta, que inspecionou o barco, não encontrou qualquer indício de armamentos.

A reportagem entrou em contato com a advogada Ariadne Telles, da comissão de direitos humanos da OAB-RO, que integrou a primeira missão da Flotilha. Ela não estava no navio, mas fazia a cobertura jurídica do grupo em Malta. A advogada relatou que a população local demonstrou apoio inicial à Flotilha, mas que esse apoio arrefeceu após campanhas de difamação. Sua percepção indica que a opinião pública se revela sensível a disputas informacionais, e que que esta disputa também se dá internacionalmente.

A reportagem perguntou se a Flotilha vai processar André Lasjt. A advogada respondeu que o foco do grupo permanece em “abrir um corredor humanitário para que a fome não seja usada como arma de guerra”. A reportagem também entrou em contato com o presidente-executivo da StandWithUs Brasil, André Lasjt, e ainda aguarda retorno.

O veleiro Madleen. Fonte: @MarionLpz

Embora não tenha conseguido entregar alimentos aos palestinos, a Flotilha da Liberdade expôs as linhas de tensão do que se sabe a respeito do bloqueio a Gaza. Sua maior entrega foi simbólica: forçou governos, instituições e o público a se posicionarem, ou reiterar suas posições. A reação desproporcional de autoridades — da ironia oficial à tentativa de criminalização dos ativistas — revela o temor de perder não o controle do território, mas da narrativa. E em uma guerra onde as versões pesam tanto quanto os fatos, a embarcação pode ter falhado logisticamente, mas cumpriu uma função política: escancarar a disputa pela opinião pública.

A deputada francesa Rima Hassan, uma das tripulantes do Madleen, ao desembarcar na França depois de ser deportada, fez um rápido discurso, em que reconheceu a viagem humanitária foi uma ação simbólica e política:

“O primeiro objetivo da nossa ação era, evidentemente, levar ajuda humanitária a Gaza, pelo menos tanto quanto podíamos fazer com este barco. Mas também, e acima de tudo, denunciar e quebrar o bloqueio”

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