Já está em vigor: lei sobre eventos religiosos em escolas nasceu em meio a ataques contra líder de terreiro
Lei municipal de Porto Velho obriga escolas a notificarem com antecedência atividades de cunho religioso. Mãe de santo sofreu ameaças e agora é representada por juristas de renome.

*Esta reportagem foi atualizada em 4/6/2025, às 17:16.
Aprovada com vetos pela prefeitura de Porto Velho, a nova regra, que exige a notificação sobre atividades de cunho religioso, nasceu em meio a um turbilhão de desinformação e intolerância nas redes sociais. Inspirada por um episódio envolvendo a participação de uma mãe de santo (da religião Tambor de Mina) em uma escola municipal, o projeto de lei avançou enquanto a mulher precisou lidar com ataques virtuais, ameaças, e o medo de sair de casa.
A lei 3.256/2025, sancionada no início de maio pelo prefeito Leo Moraes (Republicanos), tem origem no projeto nº 4752/2025, de autoria da vereadora Sofia Andrade (PL-RO). A parlamentar anunciou a proposta em um vídeo polêmico no Instagram, onde afirma “O Estado é laico, mas eu sou cristã”. No vídeo, foram utilizados trechos do material de lançamento do livro Meu terreiro, Meu Axé, que aborda tradições do Tambor de Mina com o objetivo de desmistificar a religião de matriz africana. O projeto foi financiado via lei Paulo Gustavo e está em sintonia com a Lei 10.639/2003, que inclui o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira no currículo escolar.
Embora o rosto da mãe de santo tenha sido borrado no vídeo da vereadora, a ausência de contextualização sobre o propósito do material levantou questionamentos sobre a instrumentalização do caso para justificar a proposta e meio a acusações de intolerância religiosa.
Lei sancionada reduz prazos, exclui exigências e amplia proteção a servidores
A nova lei que trata da comunicação prévia sobre atividades religiosas em escolas de Porto Velho apresenta mudanças importantes em relação ao projeto original. O prazo mínimo para que pais ou responsáveis sejam informados sobre eventos de cunho religioso no ambiente escolar passou de 30 para 15 dias de antecedência.
Além da redução no prazo, também foram retirados trechos do texto que exigiam que as escolas enviassem uma série de informações detalhadas – como justificativa pedagógica, previsão de participação dos alunos e um termo de autorização das famílias.
Outro ponto que não constava no texto original, mas foi incluído na redação final, isenta de autorização prévia atividades que estiverem previstas no planejamento pedagógico e nos materiais didáticos oficiais.
Já em relação a proteção contra constrangimentos ou intolerância religiosa, a nova lei ampliou o alcance, estendendo a garantia não apenas aos estudantes, mas também aos servidores das instituições de ensino.
O evento que motivou a lei
O lançamento do livro Meu terreiro, meu Axé estava programado para acontecer na Biblioteca Municipal Viveiro das Letras, em 21 de março — data que marca o Dia Internacional de Luta pela Eliminação da Discriminação Racial e o Dia Nacional das Tradições de Raízes de Matrizes Africanas e Nações do Candomblé no Brasil. O livro aborda o cotidiano de um terreiro a partir do olhar de Alice, uma criança negra com 10 anos de idade que acompanha a mãe nos cultos.
Zeneida Lins de Azevedo é a autora do livro. Conhecida como Mãe Zeneida de Navê, é vodunsi (iniciada) do culto afro-brasileiro Tambor de Mina e Encantaria, tradição religiosa com origem no Maranhão, século XIX. Ela A palavra “Tambor”, o “batá”, destaca o papel do instrumento nos rituais, enquanto “Mina” se refere aos africanos escravizados naturais da região da “Costa da Mina”, que compreende Togo, Benin e Nigéria.

Mãe Zeneida também é sacerdotisa da Casa das Minas Cabocla Mariana e Nochê Navezuarina, localizada em Porto Velho, RO. Em entrevista à reportagem, ela contou que desde, o início do projeto, a expectativa esperado era realizar o lançamento na Biblioteca Municipal Viveiro das Letras, localizada na Avenida Jatuarana, Zona Sul da capital.
O projeto em questão foi submetido a um edital de chamamento público da Fundação Cultural de Porto Velho (FUNCULTURAL) e aprovado. “Nós registramos de forma clara que o lançamento seria na Biblioteca Viveiro das Letras e que buscaria atrair público”, explicou Mãe Zeneida.
Taiane Sales, assistente de produção, conta que um plano foi articulado com a direção da escola Joaquim Vicente Rondon para levar os alunos ao lançamento. Segundo Taiane, a direção falou que era cristã, que tinha conhecimento da Lei 10.639/2003, e que autorizaria a participação das crianças.
A administração da biblioteca, por sua vez, confirmou que foi comunicada sobre o plano e informou que aguardava a chegada de três turmas.
Contudo, um imprevisto mudou os rumos da programação. “Logo pela manhã, ao entrar em contato com a diretora, fui informada que a coordenação e os docentes não encaminharam as autorizações para os pais, o que era necessário para os alunos saírem da escola”, relatou Taiane.
Diante da situação, a produção optou por um plano B: levar a apresentação do livro diretamente para a escola.
Nem todos viram com bons olhos

A recepção das crianças foi positiva e surpreendente.
“Foi primeiro na escola por causa do horário das crianças. Aí depois eu fui para a biblioteca” relata Mãe Zeneida. “Eu perguntei assim: ‘Alguém aqui já foi no terreiro?’ Aí um garotinho levantou a mão e disse: ‘Eu já. Eu vou com a minha tia.’ Aí depois outros começaram a levantar a mão, tipo assim, umas seis crianças ou mais. Fiquei surpresa.”.
A leitura encerrou pela metade para não atrasar a programação na biblioteca. “A gente ainda tinha a distribuição dos livros para cada um, das camisetas, terminamos muito em cima da hora, e fomos direto para a biblioteca.”, relatou Taiane, que ponderou: “A cultura, a criança, a arte, elas são muito abertas, não tem esses tabus e preconceitos como os adultos. A gente via até algumas pessoas vigilando, certos olhares… alguns funcionários chegaram a nos tratar de maneira bem ríspida”.
“Sabe que na apresentação que eu fiz estava a diretora, as professoras, e elas me pediram o livro. Aí uma funcionária que estava lá pediu o livro, olhou, e deu as costas”, continuou Mãe Zeneida.
Mensagens de intolerância começaram após o evento

Segundo Taiane, as mensagens começaram a chegar logo após o término do lançamento na biblioteca. “Abri meu WhatsApp, minhas conversas, e a própria direção já estava ligando. Me enviou prints de mensagens questionando a validade do livro.”.
Zeneida também recebia mensagens da direção com prints: “Falaram até que eu fiz um ritual para demônios. A direção estava recebendo ataques, havia pais muito agressivos, ameaçando fazer denúncias na Secretaria de Educação. Foi feita uma distorção total”.
A diretora da escola, Rosilda Garcia não quis gravar entrevista.
A reportagem entrou em contato com a Secretaria Municipal de Educação (Semed) e aguarda retorno.
Repercussão do lançamento e ataque nas redes sociais
O caso repercutiu nas redes e chegou ao Legislativo. Na semana seguinte aos ataques, a vereadora Sofia Andrade e o deputado estadual Eyder Brasil, ambos do PL de Rondônia, apresentaram projetos de lei que exigem a notificação prévia de 30 dias aos pais ou responsáveis sobre eventos religiosos em escolas, com a justificativa de proteger a liberdade de crença.
Em vídeo publicado no perfil do Instagram no dia 25 de março, Sofia Andrade afirma, por cima de registros do lançamento do livro, que “um evento religioso” ocorreu dentro de uma escola municipal. Ela não menciona que se tratava do lançamento de um livro infantil, cuja temática está amparada pela Lei 10.639/2003, que prevê o ensino da história e cultura africana e afro-brasileira.
“Estou apresentando um projeto de lei para que, a partir de agora, o município de Porto Velho passe a respeitar as nossas crianças, a respeitar a fé das famílias e que nós tenhamos responsabilidade dentro das nossas escolas municipais”, declara a vereadora.
Já o deputado estadual Eyder Brasil, em nota da assessoria publicada no site da Assembleia Legislativa, afirma que o projeto “não tem relação com intolerância religiosa, mas sim com o direito das famílias de acompanharem e decidirem sobre a educação de seus filhos”.
A nota também diz que a proposta “ganhou força após um vídeo nas redes sociais mostrando um líder [sic] religioso conduzindo ensinamentos espirituais dentro de uma escola”, acrescentando que “ela [a líder religiosa] citou uma suposta legislação que embasaria sua presença na instituição”.

As mensagens de ódio recebidas por Mãe Zeneida escancaram o grau de intolerância ainda presente em Porto Velho. A repercussão do caso gerou indignação e reacendeu o debate sobre o papel da escola na valorização da diversidade cultural e religiosa.
Também houve manifestações de apoio. O deputado federal Pastor Henrique Vieira (PSOL-RJ) manifestou solidariedade a Mãe Zeneida de Navê. Em seu perfil no instagram, o deputado informa que denunciou o caso para o Ministério Público de Rondônia.
“Ela [Mãe Zeneida] foi convidada para a escola para contar a história deste livro [Meu terreiro, meu Axé]. Insisto, [a obra] tem uma dimensão cultural: aumentar a representatividade infantil de crianças que são do Axé”

.Nas redes, a população também reagiu às falas dos parlamentares. Entre os comentários, internautas apontam contradições no uso da ideia de Estado laico. “Se é laico, não me interessa ela ser cristã”, diz uma das mensagens, lembrando que o financiamento da educação pública vem de todos, inclusive de quem professa religiões de matriz africana.
Em outro comentário, uma internauta relembra que era obrigada a orar pelos professores, indicando uma “naturalização” das práticas cristãs em sua trajetória escolar
A reportagem entrou em contato a vereadora, mas ainda não obteve resposta. A reportagem tentou entrar em contato com o deputado estadual Eyder Brasil, sem sucesso.
Mãe Zeneida amplia defesa de direitos com jurista de renome
O pl tramitava na câmara municipal quando Mãe Zeneida sentiu o baque. Uma das coisas que mais lhe deixou angustiada foi a percepção de ter sido filmada sem saber. “Eu comecei a ter fobia. Fiquei um tempo sem sair [de casa], e quando saía, sempre estava com alguém por que eu tinha de resolver as coisas do dia a dia. Falei ó: ‘me filmaram andando, alguém que reconhece pode vir me atacar’”.

A produtora Taiane Sales e Mãe Zeneida de Navê tinham de lidar com ataques, ameaças, e com tentativas de desativação do perfil de Mãe Zeneida no Instagram. Juntas, elas buscaram a Defensoria Pública do Estado de Rondônia.
Por meio de um ofício elaborado pelo coordenador do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial [NUERC], Fábio Roberto de Oliveira Santos, foram apresentados os resultados de uma análise do projeto de lei 4.752/2025, da vereadora Sofia Andrade.
No ofício, o defensor Fábio Roberto de Oliveira Santos destacou que as escolas públicas devem evitar proselitismos – tentativa de convencer pessoas a aderirem a crença, ideologia ou religião por meio de persuasão ativa – mas também que as escolas não devem suprimir discussões sobre diversidade religiosa. O documento também reforça que o ensino da cultura afro-brasileira e indígena, previsto em lei, não pode ser censurado sob pretexto de “neutralidade religiosa”.
Atualmente, Mãe Zeneida é representada pelos advogados Vitor Noé e Hédio Silva Júnior. Este último ganhou notoriedade nacional por sua atuação vitoriosa no Supremo Tribunal Federal STF), ao defender a legalidade do abate religioso em terreiros, no âmbito da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.983. A presença de Silva Júnior no caso sinaliza uma possível intensificação no enfrentamento jurídico contra o que tem sido denunciado como racismo religioso.
*Mãe Zeneida de Navê, é vodunsi e sacerdotisa da Casa das Minas Cabocla Mariana e da Nochê Navezuariana;
**O culto registrado em imagem foi conduzido por seu Vodunon, Márcio de Bosso Jara;
***Taiane Sales era assistente de produção, não a produtora;